Dois anos depois, cidade ainda vive a tragédia provocada pela Samarco; não há sinal de recuperação
Por Marcio Motta (*)
Mariana foi uma das cidades mais importantes no início da exploração do ouro no Brasil. O metal foi encontrado por volta de 1696 e provocou uma corrida e tomada de território pelos colonizadores, que a princípio tentaram utilizar mão-de-obra indígena, substituindo-a posteriormente pelos escravos negros. O sistema escravista de Minas Gerais no século XIX foi o maior que existiu em toda a história da instituição servil no Brasil. E ainda deixa suas marcas na cidade.
Foi em Mariana, cidade que abriga a primeira Câmara de Minas Gerais, que tive mais contato com histórias ligadas à escravidão. Sua construção foi iniciada em 1768 e demorou 30 anos para ser finalizada. Foi cadeia e possível local de beneficiamento de ouro e assim possui muitas marcas da presença de escravos.
Na Praça Central, o artista popular Dino, dono de um ateliê na cidade através do qual desenvolve projetos de arte e educação, ensinava a arte da pintura a duas mulheres que vieram do Havaí, numa comunicação incrível proporcionada pela arte e pela disposição, uma vez que nem Dino fala inglês e nem as suas alunas falam português. Penso nas dificuldades que enfrentamos hoje em ensinar e nos comunicar, mas vejo que isso não é problema quando as pessoas estão dispostas a entender e aprender algo.
Mariana não está no Caminho Velho da Estrada Real, mas valeu a pena desviar da minha rota inicial para que pudesse compreender um pouco mais sobre o crime socioambiental de responsabilidade da Samarco.
Não tinha noção do que a tragédia ocorrida há quase dois anos provocara na região. A região do centro histórico da cidade e seus arredores não foi atingida pela lama, mas foi duramente impactada socialmente pelo deslocamento das pessoas que perderam suas casas, familiares e empregos e pela migraram para as regiões não destruídas. Mas em alguns distritos, como Paracatu de Baixo, que fica a 34 km do centro, a destrição foi avassaladora.
Cenário desolador
Em 2015, quando a barragem de Fundão da mineradora Samarco rompeu, a lama chegou pelo Rio Gualaxo do Norte e atingiu o distrito de Paracatu de Baixo, município de Mariana, destruindo cerca de 50 casas e outras construções. Mesmo com a lama atingindo em alguns pontos mais de 20 metros de altura, algumas casas permaneceram em pé, caso de algumas salas de aula da Escola Municipal. O cenário é desolador, silencioso. Como educador, nunca consegui me acostumar com uma escola silenciosa. O sentimento é ambíguo: ao mesmo tempo em que parece que o tempo parou em 2015, a sensação é de que a tragédia aconteceu há pouco tempo, pois tudo ainda está do mesmo há dois anos.
A lama ainda está na escola, nas ruas e no que sobrou das casas. As pessoas, não. Apenas alguns sobreviventes que não têm alternativas permanecem no local.
Analisando as fotografias dessa viagem, uma das características mais presentes são tons os alaranjados, principalmente devido a 90% do Caminho Velho ser numa das estradas de terra mais bonitas do Brasil. Só não imaginava que o rio seria transformado num caminho de terra. O rio Gualaxo do Norte, que antes dessa lama era fonte de vida e sustento para muitas comunidades, hoje não abriga muita coisa além da própria lama (que em alguns pontos chega a um metro de altura) e água inutilizável.
Com um enfoque explícito na promoção da imagem de uma empresa arrependida, dedicada a reparar os danos, que cuida de todos e por isso merece uma segunda chance (esse foi o título insano da capa da revista Isto É Dinheiro desse mês, que avalia “os prejuízos financeiros das atividades da Samarco” por causa da tragédia, com entrevistas com seu presidente, Roberto Carvalho, que considera injusta a imagem que a mídia passa da empresa, e que os rios impactados pelo crime ambiental já estavam poluídos com esgoto não tratado antes da lama chegar. A empresa recebeu 73 notificações e 23 autos de infração do Ibama pela destruição de parte da Mata Atlântica e até agora não pagou as multas ambientais no valor de R$ 400 milhões que o órgão aplicou. Mais: está brigando na Justiça para continuar tudo como está.
“Não esqueçam de nós”
Antonio Vicente é morador de Paracatu de Baixo, um dos pouco que não teve a casa destruída pela lama. Parei o carro em seu quintal e durante nossa conversa e caminhada ele foi me apresentado uma cidade antes da tragédia: as casas, os moradores, os amigos, o bar, a igreja e a escola.
O sentimento é de abandono: “As pessoas de fora só sabem do que ocorreu em Mariana; ignoram o que aconteceu em Paracatu de Baixo”, diz seu Antonio Vicente, com um sentimento de impotência. Ele não consegue mais plantar, pescar e cuidar dos animais, atividades do dia a dia dele e dos seus antigos vizinhos.
Antes de me despedir, pergunto a ele se posso ajudar de alguma forma e ele me diz: “O que peço é que não se esqueça do que está vendo aqui”. Sigo viagem, com a certeza de que alguma coisa ficou em Paracatu de Baixo.
Um dia volto para buscar.
(*) Marcio Motta é biólogo, especialista em felinos, e colaborador do Portal ECOinforme