Sempre gostei de História. Sim, com H maiúsculo. Tanto que oito entre dez livros que li ao longo da vida são os chamados não-ficção. Pensava eu quando adolescente: temos tanto a aprender e conhecer, e o mundo tem tantas histórias já, então por que ir atrás de outras que saíram de algumas mentes prodigiosas? Embora tenha percebido rapidamente o tamanho da bobagem daquele raciocínio, mantive os livros de ficção em um segundo plano.

O gosto pela História norteou até mesmo a maioria das minhas férias. Os destinos aqui e no exterior, sempre que possível, guardavam alguma relação com fatos e lugares sobre os quais já lera ou ouvira falar. Por isso, tenho fascinação pelas Minas Gerais. Afinal, foi entre suas montanhas que boa parte da existência de mais de 500 anos de Brasil foi escrita. O Brasil-Colônia devia a Minas importante parcela de sua pujança econômica.

Visitar as cidades e arrabaldes de Ouro Preto, Mariana – que a Samarco tentou, mas felizmente não conseguiu destruir inteiramente –, São João del-Rei e Tiradentes, apenas para enumerar as mais famosas e não alongar muito a lista, é sorver um pouco de tudo isso e tropeçar em causos e personagens, vivos e do passado, que valem um bom livro ou, com os vivos, claro, ótimas conversas regadas com as mais deliciosas cachaças.

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E quem quiser levar essa combinação de conhecimento com paladar à risca deve, sem demora, se encaminhar para a nem tão famosa Coronel Xavier Chaves, cidadezinha vizinha de Tiradentes e São João del-Rei. Lá, além da farta lista de candidatos a descendentes de Joaquim José da Silva Xavier – a começar pelo próprio militar que deu origem ao nome da cidade, que, dizem, era bisneto da irmã do mártir da Inconfidência –, perdura o Engenho Boa Vista, apontado por seus proprietários como o mais antigo em operação no Brasil. De seu alambique, asseguram, sai cachaça da boa desde antes de 1755, ininterruptamente.

Independente da precisão de datas e da perenidade ou não da produção ao longo de mais de 260 anos, o conjunto arquitetônico, com imensa roda d’água e alambique de cobre, já seria motivo mais do que suficiente para uma visita desprendida de qualquer pressa. Se for aos sábados, ainda, os próprios donos tratam de colocar uma boa linguicinha caseira para fritar no fogão a lenha e acompanhar o proseio sobre o local e as branquinhas que saem sob a assinatura Século XVIII – ou até com outras, sob encomenda, como é o caso de uma das versões da conhecida Santo Grau. É, assim, o chamado tiro na nuca para qualquer turista mais apressado.

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E como gostam de prosear as pessoas de lá! Falam com orgulho da produção e de tudo do que se passa naquele endereço, conhecido por qualquer um do município de menos de cinco mil habitantes e encontrável a um indicar de dedo. E o conversê vai longe, adornado pelos muitos aromas que por ali passeiam, da madeira queimando na fornalha, do bagaço da cana que sai da moenda, do próprio caldo da cana e, claro, da cachaça sempre branca.

Rubens Chaves – nem preciso alertar para o sobrenome – é o atual proprietário do Boa Vista. Mas a terra ao redor, de onde sai a cana de açúcar orgânica, e o próprio engenho estão na sua família há pelo menos cem anos. “Essa roda d’água de ferro é nova, meu avô trocou no começo do século passado. A original era de madeira”, ouvi dele em uma das minhas três visitas ao engenho, distante 180 quilômetros da capital Belo Horizonte e quase três vezes mais de São Paulo, trecho que pode ser vencido de carro sem grandes dificuldades em pouco mais de 7 horas.

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Seu Rubens, que organiza junto com os filhos uma rápida degustação de sua produção também aos sábados, é, digamos, um autêntico conservador. Cachaça de seu engenho só branca! E não adianta querer contra-argumentar. Foi quase seu cartão de visitas quando de minha primeira passagem por lá há coisa de uma década. “Envelhecimento em madeira serve para disfarçar deficiências. A cachaça original é branca. Esse negócio de utilizar madeira começou com o pessoal do uísque”, me alertara naquela oportunidade.

No Boa Vista, como não poderia deixar de ser, portanto, o envelhecimento sempre foi em tanques de pedra. Foi! Porque a saúde pública cobra seu preço e, por determinação do Ministério da Agricultura, há alguns anos o processo envolve recipientes de inox.

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Chaves nunca disfarçou seu desconforto com a exigência governamental. E tem para lá de razão. O cenário é setecentista, não condiz com o brilho da sofisticada liga metálica. É como se deparar com um smartphone sobre a escrivaninha da casa de Tomás Antonio Gonzaga em meio aos manuscritos de Marília de Dirceu.

Faz muito bem, portanto, Chaves estampar no site da Século XVIII: “Eu não tenho uma destilaria, tenho um museu que funciona como destilaria”. Assino com firma reconhecida. E nem precisa ser a assinatura de Deus, como escreveu Vinicius de Moraes, célebre apreciador de destilados, envelhecidos em madeira ou não.

Fica então a sugestão de aula, passeio e rara experiência até mesmo para o mais inveterado abstêmio. Que aromas e sabores de tantos séculos perpetuem, de uma forma ou de outra, na história de cada um.

Por George Guimarães

jornalista, curioso e cachaceiro, sim senhor.